Poderá ainda consultar imagens 3D de Lisboa antiga em:
http://www.museudacidade.pt/arqueologia/cartaarqlisboa/Paginas/default.aspx.
Entrevista com Dra. Ana Caesa, coordenadora do Serviço de Arqueologia do Museu da Cidade:
1- Os trabalhos de arqueologia no Largo do Coreto de
Carnide, desenvolvem-se desde 5 de Março, decorrentes das obras de
requalificação paisagística do Largo do Coreto e ruas adjacentes (nomeadamente
a Rua Neves Costa e a Rua do Machado), sob a direcção dos arqueólogos do
Serviço de Arqueologia do Museu da Cidade, da Direcção Municipal de Cultura da
CML, Ana Caessa e Nuno Mota, com o apoio de um aqueólogo assistente contratado,
Romão Ramos, e de uma arqueóloga estagiária, Diana Dinis. Os trabalhos são condicionados
pela obra (uma vez que a equipa de arqueologia só actua nos locais afectados
pelas operações de requalificação do Largo), mas também, por sua vez,
condicionam o ritmo da obra. Tem que haver grande articulação, consertação e
organização, para que as equipas de arqueologia, de construção e de paisagismo
possam trabalhar em conjunto e em contínuo. E isso, felizmente, tem sido
possível.
2- O Plano Director Municipal de
Lisboa, actualmente em vigor (de 1994) coloca todo o núcleo histórico de
Carnide em área de sensibilidade arqueológica de nível 2, o que significa que
qualquer remeximento no subsolo dessa área tem ser acompanhado por uma equipa
de arqueologia que garanta, em caso de aparecimento de vestígios arqueológicos,
a sua salvaguarda.
O território nacional, no seu
conjunto, está abrangido pela lei de protecção e valorização do património
cultural (Lei 107/01 de 8 de Setembro) que obriga todas as entidades à
notificação, no prazo de 48 horas, de qualquer achado arqueológico, ainda que
fortuitamente (artigo 78º). Mas os instrumentos de gestão territorial, como os
Planos Directores Municipais, ou os Planos de Pormenor, são mais específicos e
para assegurar o cumprimento dessa lei estabelecem normas nos seus
regulamentos.
No que respeita ao núcleo antigo
de Carnide isso acontece (e com muito fundamento) porque aí os achados são
muito expectáveis. A partir de fontes arquivísticas e bibliográficas, sabe-se
que o topónimo Carnide já era utilizado nos finais do século XII,
correspondendo, nessa altura, a uma área de herdades agrícolas, propriedade de
particulares abastados e de casas religiosas de Lisboa. Uma verdadeira aldeia
só terá surgido em meados do século XIII e há referências que indicam que, nos
inícios do século XIV, a povoação de Carnide já tinha uma igreja dedicada a São
Lourenço com o seu cemitério, uma fonte, “covas”, um “rocio” e, especificamente
no lugar conhecido por “Alto do Poço” (actual Largo do Coreto), uma Ermida
dedicada ao Espírito Santo, outro cemitério, uma leprosaria (que viria a ser
desactivada em meados no século XVI com a construção de um hospital na Luz) e
(claro) um poço. Para o século XV há notícias de que Carnide se transformara em
local de descanso da família real e de outros elementos da Corte (o que indicia
a existência de casas nobres). Apartir do século XVI e até, pelo menos, ao
terramoto de 1755 (que provocou muitas destruições na zona), foram-se
instalando, ao redor da aldeia de Carnide, os conventos e as casas senhoriais,
com as suas ermidas e as suas quintas. No século XIX, entre 1844 e 1885,
Carnide pertenceu a uma éfemera Câmara Municipal de Belém que promoveu, entre
outras iniciativas a transformação do “Alto do Poço” num largo, o actual Largo
do Coreto.
Foi este tipo de informações,
juntamente com alguns edifícios e sítios classificados ou inventariados na
Carta Municipal de Património, que justificou a inclusão do núcleo histórico de
Carnide em área de sensibilidade arqueológica. E desde que esses regulamentos
que complementam a lei de protecção e valorização do património cultural estão
em vigor (o que é muito importante porque muitas vezes os vestígios passam
despercebidos às pessoas não especializadas), muitas obras em Carnide têm tido
acompanhamento arqueológico, o que tem permitido descobertas (algumas das quais
foram até musealizadas, como os silos no Largo do Jogo da Bola) e conhecer
melhor a história do sítio.
3- Os trabalhos arqueológicos que
decorrem no Largo do Coreto de Carnide já permitiram recuperar muitos elementos
da história dessa zona. Até ao momento já foram detectados:
-
30 silos (semelhantes aos que estão musealizados no
Largo do Jogo da Bola), ou seja estruturas escavadas no subsolo para
armazenamento de cereais (aquilo que as fontes arquivísticas designam “covas”)
na parte oeste do Largo, talvez abertos em época medieval, mas transformados em
lixeira subterrânea durante os século XVI, XVII e primeira metade do XVIII e
portanto cheios de materiais interessantes;
-
um poço (perto do local de coreto) aparentemente
construído em alvenaria medieval com cerca de 12 metros de profundidade
(estimada), cheio de água (em ano de seca!), talvez aquele que justificava o
topónimo “Alto do Poço”;
-
um troço de alicerce junto do qual se encontraram dois
enterramentos, na parte nordeste do Largo, portanto, em príncipio, o que restou
da demolição da Ermida do Espírito Santo e da desactivação do seu cemitério,
por iniciativa da Câmara Municipal de Belém;
-
a terraplanagem promovida pela Câmara Municipal de
Belém, entre 1857 e 1858, que transformou o “Alto do Poço” num Largo, que levou
à ocultação do poço, à demolição da ermida e ao desaparecimento do cemitério,
está muito bem marcada arqueologicamente pelo facto de, até agora, nenhum dos
silos ter sido encontrado na sua forma completa, com boca e tampa, mas antes
cortado artificialmente à cota pretendida para o piso do Largo;
No fundo todos estes vestígios
eram expectáveis no sítio, o que não se previa era a quantidade enorme de
silos, que demonstra que Carnide foi um local importante para a produção de
cereais.
4- As cronologias que podemos
referir são aproximadas e baseiam-se sobretudo numa análise superficial do
espólio (ainda sujo e sem ter merecido a atenção devida) recuperado no interior
dos silos, sobretudo nas peças cerâmicas (comuns, em faiança e em porcelana),
de mesa e de cozinha, fragmentadas, ou mesmo, praticamente intactas e em
algumas moedas de baixo valor (nem sempre em estado de conservação que permita
identificá-las facilmente). Estes materiais apontam para um período que vai do
século XVI ao Século XVIII, até ao terramoto de 1755. Terá sido este o período
em que os silos deixaram de ser local de armazenamento de cereais para
funcionarem com lixeira e por isso o seu conteúdo, que inclui para além das
peças cerâmicas, fragmentos pequenos de peças em vidro, alguns objectos de uso
comum em metal muito detereorados e muitos restos de alimentação (como os ossos
de animais e as conchas por exemplo) e de lareira (como as cinzas e os
carvões), para além de fornecer cronologias, representa aspectos da vida
quotidiana da população de Carnide desses séculos, chegando mesmo a reflectir
diferenciações sociais (apenas os mais privilegiados, aqueles que se foram
instalando em palacetes e quintas a partir do século XVI, possuiriam porcelanas
chinesas, por exemplo). De qualquer modo, há muito trabalho de gabinete e de
laboratório a fazer (meses de trabalho que começarão a contar quando os
trabalhos de campo terminarem). Só depois se poderá avançar com mais
informações.
5- O que vai acontecer a todos
estes vestígios. é uma questão muito pertinente, por vários motivos: os
vestígios são muitos e o seu registo tem sido feito à vista dos próprios
moradores que são também quem mais tem sofrido os incómodos provocados pelas
obras do Largo e, ao mesmo tempo, aqueles que mais expectativas têm
relativamente à requalificação do Largo como espaço de lazer e descanso,
arborizado e sem carros. Mais uma vez é precisa a conciliação e a articulação
para que todos os valores arqueológicos sejam salvaguardados, sem que isso
provoque constrangimentos na utilização futura do Largo.
A salvaguarda dos vestígios pode
ser assegurada de diferentes modos, mas um está sempre presente - o registo
científico, que é o que a equipa de arqueologia está a fazer. O registo
científico das realidades arqueológicas tem sido feito, o espólio tem sido
guardado (para posteriormente ser estudado e depositado nas reservas
museológicas municipais), e quando a obra terminar o Largo do Coreto será o
espaço de lazer que se pretendia. Muitas das realidades detectadas estarão cobertas,
outras terão desaparecido com o avançar da obra. A grande diferença é que se
terá conhecimento exacto da sua localização e das suas características e a
memória da sua existência permanecerá.
Até ao momento, apenas num caso a
arqueologia provocou uma ligeira alteração ao projecto: a descoberta do poço,
em tão bom estadao de conservação e cheio de água num ano de seca. Se o
projecto não fosse alterado, grande parte do poço teria que ser destruído
porque estava na rota de uma vala de saneamento para águas pluviais. A equipa
de arqueologia, com a concordância da tutela do património cultural,
nomeadamente o IGESPAR e a Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do
Tejo, propôs a preservação do poço e o desvio da vala. Essa proposta foi muito
bem aceite: a vala foi desviada e o poço será preservado. Na Direcção Municipal
de Ambiente e Espaços Verdes da CML, ponderam-se agora todas as variáveis que
decidirão se o poço ficará visível e utilizável, ou se por enquanto apenas
ficará preservado, mas ainda oculto, esperando outro projecto futuro.
E como é tão importante dar a
conhecer aos moradores os resultados da intervenção arqueológica (para que
percebam o que se passou, para que o abrandamento do ritmo da obra não seja
encarado como uma perda mas como um ganho, para que conheçam as provas
materiais da história do sítio onde vivem), a equipa de arqueologia espera vir
a ter a oportunidade de (depois de realizados os relatórios e estudado o
espólio) promover uma exposição em Carnide, sobre o assunto, com fotos, desenhos,
objectos e paineis explicativos.
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